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sábado, 19 de janeiro de 2019

OS MORANGOS Giselda Laporta Nicolelis A vizinha espiou por cima do muro. - Bom dia, seu Agenor. - Bom dia. - Que lindos estão estes morangos, que maravilha. - O senhor não colhe, seu Agenor? Estão no ponto. - Não gosto de morangos. - Que pena, aqui em casa somos todos loucos por morangos. As crianças, então, nem se diga. Se não colher vão apodrecer no pé, uma judiação! - É. - Se o senhor não se incomodasse eu colhia um pouco. Já que o senhor não gosta de morangos. - Com licença, preciso pegar o ponto na repartição. - À vontade seu Agenor, mas... e os morangos? - Não prestam para comer, têm gosto de terra. - Pena, tão lindos! Saiu pra repartição. Voltou à noite. O luar batia em cheio no canteiro de morangos. Acercou-se em silêncio. Estavam bonitos mesmo. De dar água na boca. Pena que não se pudessem comer. Suspirou fundo. Mariana, tão linda. Linda como uma flor. Mas tão desleixada, tão preguiçosa. Comida malfeita, roupa por lavar, pratos gordurosos. E aquele gênio! Sempre descontente, exigindo tudo o que não podia lhe dar, espezinhando-o diariamente pelo seu magro ordenado. Fora realmente uma gentil ideia plantar os morangos depois que a enterrara no jardim.

domingo, 24 de abril de 2011

Transcendência

Amofinava a dor sofrida
De relembrar as brevidades da vida...
Sempre quis saber porque
As borboletas vivem tão pouco
Beleza esvoaçante, intensa,
Breve...
Como breves meninos
Que vi assim,
Borboletas, belos, esvoaçantes e breves...
Vida árida, sofrer definitivo, saudade deserta
Quanto tempo vale
Vida de menino do Vale?
Sol a pino de queimar as frontes
A cruz vermelha de sangue manchando a testa
Simpatia pra estancar
O choro vermelho de suas narinas
Vale simpatia?
Tempo breve, revoo de borboletas
Pés descalços na areia quente
Agitando ao sol como que sob flores
Na guia de carros de bois
Comumente mesmo, só a brevidade
Vida exata, curtinha
Sopro em fogo de lamparina
Bate asas, menino borboleta
Para revoo azul
No eterno azul do vale...

Texto classificado para a noite literária do XXVII Festivale na cidade de Grão Mogol

domingo, 12 de setembro de 2010

Surdos ecos da consciência

Donos de grandes e boas terras eram Tio Cristóvão e Tio Chico dos Santos. Tia C’lara fazia parte dessa família. O dito, “quem com mel vivifica, com fel traz desgraça”. Escute e avalie. A palavra de boa boca não se escuta de véspera. Desassisamento puro.
Neste tempo “água era mato” nas verdes veredas do Bon’cesso. Tio Cristóvão puxou um fio d’água e fez, feitinho com suas mãos próprias, um rego nos terreiros da fazenda, facilitando os afazeres das mulheres da casa e afastando-as do falatório do gentio que freqüentava a aguada do rio. Casa grande era a sua, de varanda, aparecia imponente feito boi pegador à espreita, no meio do verdume.
Tia C’lara, criatura ruim, desde o sangue que brotava do coração, amante de ruins dizeres, em desculpas e façanhas, carrega os afazeres do rego para o rio da baixa, caminho de todo dia de Chico dos Santos, dando contas ao pai Cristóvão, de acontecimento não acontecido, e da horinha chegada da volta de seu tio. Mau querência antiga.
Tio Cristóvão, homem bravo de valentia, armado de espingarda, deixa o desquartejamento de novilha gorda e sai de tocaia a fim de morte do Chico dos Santos. Na hora dita, Tio Cristóvão, com o rouco grito de sua espingarda, alveja Chico dos Santos pelas costas, que na agonia da morte, forcejando ainda, como um cão ferido, pede esclarecimentos pelo acontecido. Vendo se ferido por maldizeres alheio, cala o irmão com a morte, disparando sua garrucha, antes de desfalecer-se.
A novilha, nesse meio tempo, fora devorada pela porcada que vivia a revelia pelas redondezas. Tia C’lara, depois de tanta desgraça, a esperança era de todos que achasse norteamento. Mas qual!... “Aroeira de mato virgem não alisa”. Ficou herdeira de grandes arrozais e, de ruim que era, armava arapucas para capturar as galinhas de sua mãe que se aventuravam dementes em suas plantações, que depois de presas, tinham seus pescoços torcidos e jogados de lado pela Tia C’lara. Acometida de mazela sem cura, desatinada em doidura, para a morte não tinha sossego. Sentindo o eco de suas palavras fatais, e os assaltos de sua consciência, passava os dias e noite torcendo pescoços de galinhas e dando tiros para o alto, ensimesmada, em ecos de suas palavras surdas.
Sta Nightingale

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Universo da Linguagem

Universo da Linguagem

“O nascimento de uma palavra é como o nascimento de uma alma”, disse-me um amigo outro dia. Julguei sábias tais palavras, e como bom maluco que sou, comecei a imaginar a cena: um casal de letras, ou muitas delas, em plena orgia, um imenso bacanal, engalfinhavam-se enamoradas no cio, iniciando o ciclo de reprodução, o “acasaletramento”.

Assim, senti-me o próprio Criador que prepara machos e fêmeas para a propagação da espécie. No entanto, diferente disso, cerimoniosamente, juntei masculinos com masculinos, femininas com femininas. Relacionei casos oblíquos com casos retos, objetos diretos com indiretos, repudiei a intransigência dos verbos intransitivos e, amigavelmente, coloquei-os a conviver com verbos transitivos, e Pimba! Como o espermatozóide que fecunda o óvulo, a um só instante, julguei ter criado uma “polis” apenas palavras perfeitas para um lugar perfeito. Ledo engano! Apareceram bárbaros, mutilaram meus adjetivos, pronomes; degolaram verbos, violentaram, friamente, minhas palavras.

Tomadas de ódio, algumas se rebelaram. Antes, as que eram sintaticamente belas, ficaram com o sistema semântico arruinado, feio, escabroso, outras, vendo suas famílias em tal situação de desordem, a classe gramatical abalada, perderam o sentido e se meteram em qualquer lacuna, ficando fúteis e vazias de significação.

Não obstante, nem mesmo a necessária análise, nem morfológica, nem sintática, resolveu tal mazela. E... ainda assim, no meio do caos que se estabeleceu, muitas delas, meio que banalizadas, como em uma seleção natural da espécie, borboleteando, metamorfoseando, ficam raízes, desdobram-se entre prefixos e sufixos, ditam a temática da vez e sustentam a base do universo da linguagem.


1º Lugar Concurso Literário e Performático Da Unipac Bocaiuva